segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Capitalismo e luta de classes para crianças e outros iniciantes.



Neste último final de semana, manhã de sábado, após tentativa infrutífera de assistir algo de interessante, e indisposto para iniciar algum filme que exigisse mais tempo diante, lancei-me à arqueologia de memória, e me deparei com ótimos exemplares de animação, aquilo que as pessoas com mais de 45 anos, como eu, chamavam de "desenho animado".

Sempre me espantei com duas constatações:

1- Os criadores destes filmes detinham um arsenal de inventividade espetacular, pois como explicar a estética de uma Pantera Cor de Rosa, ou Pernalonga?

2-A partir desta assertiva acima, é bem provável que sempre houvesse alguma mensagem política embutida nos aparentemente inofensivos filmes de animação.

Dentre todas as simbologias e teorias de conspirações embutidas nestas peças de animação, a que sempre me chamou atenção era o Coiote e Papa Léguas.

Nos Simpsons, apesar de sua complexidade, estas teorias são mais explícitas, como uma meta-linguagem, enquanto no Coiote e Papa Léguas, a aparente simplicidade da trama me parece um paradoxo de sofisticação narrativa.

Revisitando o desenho animado neste último fim de semana, não pude deixar de confirmar que esta percepção, mesmo que os personagens e seus roteiro sejam bem antigos, mas que se adaptam como uma metáfora exata do sistema capitalista, seus modelos de representação política e seus sistemas de lei, e por fim, suas dinâmicas de classes.

Já no domingo, assisti um documentário em um streaming sobre as manobras permanentes das elites estadunidenses para afastar milhões de cidadãos daquele país, a esmagadora maioria pobres, pretos, latinos e nativos (índios), do direito ao voto.

Todas aquelas cuidadosas entrevistas, todos aqueles dados, tudo que foi reunido para provar que, de fato, a chamada democracia dos EUA nunca contou com efetiva participação popular, poderiam ser representadas em um "desenho" do Coiote e Papa Léguas.

O mesmo se aplica ao Brasil, e a tantos outros países capitalistas, onde cada qual com sua História e processos políticos, nunca permitiram (e nunca permitirão) que haja alguma alternância real de poder nas estruturas que mantêm este modelo de organização econômica, que passou a conter em si todas as outras formas de sociabilidade, reduzindo tudo à noção de mercadoria.

O primeiro ponto que chama a atenção no desenho animado Papa Léguas é a permanência.

Explico:

O cenário é sempre o mesmo (deserto), e os personagens não alteram seus papéis (um persegue o outro foge), ao mesmo tempo que a dieta do suposto predador permanece sempre a mesma.

Ou seja, não há qualquer chance de alteração de papéis, nem alternativa ao suposto predador de se alimentar com outra presa.

Esta característica se associa diretamente a outra:

O predador (Coiote) é o vilão, enquanto o pássaro (Papa Léguas) é o herói.

Nesta luta, o Coiote precisa sempre de muitos recursos e estratagemas (política), pois sua condição não é suficiente para alcançar o pássaro, enquanto este último é uma força espontânea, imutável e insuperável da natureza, que não precisa de nenhuma relação com o ambiente, e basta em si mesmo (mercado, representados nas suas elites).

Essa noção revela que aqueles que lutam pela sobrevivência (comer) estão sempre em condição inferiorizada no imaginário, e mesmo que usem de todos os métodos (política, movimentos sociais, etc) ainda assim nunca conseguirão seu objetivo.

Ainda que o Coiote siga todas as regras, monte todas as armadilhas seguindo uma lógica e todas as leis, no caso do filme, as da física, quando a perseguição se desenrola, as pedras rolam ao contrário da força (lei) da gravidade, espelhos não se encaixam nas leis da óptica, explosivos nunca tenham eficiência esperada, etc.

Mais ou menos com a esquerda mundial e os setores chamados reformistas.

Mesmo que sigam todas as regras partidárias, mesmo que se encaixem e respeitem todas as instituições, e mais ainda, mesmo que nunca tenham ameaçado, nem de longe, a hegemonia capitalista e as estruturas que o mantêm, ainda assim, sempre ocuparão a mesma posição relativa no edifício de poder capitalista.

A esquerda reformista, como o Coiote, sempre fica com os talheres nas mãos, com os pianos precipitados em enormes desfiladeiros sobre as cabeças, com os explosivos nas mãos, ou atropelados por caminhões da ACME, reificados nos golpes cívico-militares,  as bombas semióticas da mídia, o partidarismo dos órgãos judiciários (lawfare).

Sejam nas rupturas dramáticas experimentadas nos países mais pobres, da África, Américas Central, do Sul, Sul da Ásia e Oriente Médio, sejam nos modelos partidários e eleitorais, como os dos EUA, ou da GBR, o fato é que o Papa Léguas (mercado e suas elites) subverte todas as regras e leis, sempre que o Coiote (classes mais pobres e seus representantes da esquerda) se aproxima.

Resta a esquerda mundial entender que enquanto aceitar esse roteiro imutável, com regras que se alteram a cada momento no qual ela parece chegar mais perto do objetivo, enfim, enquanto aceitar seu papel de Coiote, e mantiver a mesma "dieta", não pode esperar resultado diferente, ou seja:

Bip-bip.





3 comentários:

  1. Caro Douglas, "O predador (Coiote) é o vilão, enquanto o pássaro (Papa Léguas) é o herói".

    Mas, nós torcíamos para o "vilão".

    Para Aristóteles a tragédia é imitação que, suscitando o terror e a PIEDADE, tem por efeito a purificação dessas emoções.

    Na tragédia, existe um efeito de prazer advindo da substituição do sofrimento que é apresentado, por algo positivo. Esta metamorfose é a marca da catarse e do dispositivo trágico. Ela se dá via identificação e compaixão.

    A torcida pelo Coiote, mesmo ele representando o "mal", se dá pelo fato de que nos colocamos no lugar dele, ou seja, sentimos o quanto ele está sofrendo com suas tentativas inúteis para alcançar a ave.

    Isso é reforçado pelo fato de que a história e narrada(mostrada) pelo ângulo dele, o pássaro só aparece para frustrá-lo(ou nos frustrar?).

    Um abraço.

    Antônio Duarte.

    ResponderExcluir
  2. Caro Antonio, sob a ótica da filosofia grega, e até da psicanálise, seu comentário faz sentido:
    A empatia é um traço que pode ser definido como um traço construído no campo da libido e da erotização do sofrimento alheio, o que conhecemos como sadismo e masoquismo.
    No entanto, estas categorias não explicam a tentativa de estabelecer, a priori, que o vilão seja o predador, e que nesta condição guarda uma relação de causa e efeito (historicidade) com a realidade e o tempo, enquanto o herói é apresentado como uma força da natureza.

    Ao mesmo tempo, a sutileza filosófica e psicanalítica apontada por você implica em reconhecer também que este processo de empatia com o "vilão" busca, politicamente, nos incutir uma culpa que, justamente, nos impede de realizar completamente a erotização desta empatia, a interpretação da realidade dentro de um psiquê já previamente construída, e irmos além, ou seja, construirmos um novo "eu", que na linguagem sócio-marxiana é reificada no novo homem.

    ResponderExcluir
  3. Hehehe, espero ter entendido você, e ter me feito entender...

    ResponderExcluir

Quem faz a fama, deita na ca(â)ma(ra)? Um breve momento na Gaiola das Loucas!

  Algo vai muito mal quando juízes e policiais protagonizam política, e pior ainda, quando são políticos que os chamam para tal tarefa... Nã...