quinta-feira, 11 de março de 2021

A era do fim das coisas como serão!

Nos últimos meses, melhor dizendo, nos últimos anos, uma boa parte da teoria das ciências sociais, políticas tem se dedicado a entender este momento que parece ser o de uma transição do capitalismo como forma de organização social produtiva, que tem por base a acumulação pela expropriação da mais-valia extraída do trabalho adquirido através da remuneração salarial.

Neste grupo de pensadores, o destaque é, na minha opinião, para um bom time de geógrafos, que parecem ter saltado à frente da anemia intelectual dos historiadores, sociólogos, antropólogos e cientistas políticos.

Talvez na esteira do David Harvey, o geógrafo britânico um dos maiores entendedores do que se passa no mundo hoje.

Não citei economistas de propósito, pois os considero como meros charlatães, um tipo de "parapsicólogos sociais", tão desprezíveis quanto inúteis em sugerir narrativas, ao mesmo que tentam em desespero torná-las reais com seu suposto dialeto, o econômes.

Não sabemos se esta "hegemonia da Geografia" se dá porque o fim do capitalismo, que é um sistema produtivo que se organiza tendo o locus (espaço) como um dos pilares, indica que sua próxima fase prescindirá em muito desta premissa espacial (da geografia do capital pelo mundo).

Mas o fato é que os geógrafos estão na crista da onda, e procuram nos fornecer bases teóricas robustas, com ênfase na atualização do pensamento marxiano, que apesar de reconhecidamente não resolver todos os nossos problemas (e nem pretendia, diga-se), ainda é o mais atual e agudo modo de entender a realidade capitalista que dispomos. 

Muito se fala hoje em "capitalismo de dados", "capitalismo de vigilância", "capitalismo financeiro", etc.

Me parece, com toda minha ignorância intelectual, fundada em meu total desprovimento acadêmico, que a corrida é para dar antes um nome para chamar de seu, garantindo loas à vaidade pessoal da primazia da nomenclatura, deixando de lado a necessidade de real entendimento do que se passa.

É um desejo legítimo, porém inútil, porque a vaidade, sabemos, é a mãe de todos os pecados capitais.

Há muito tempo atrás, acho que eu tinha uns 17 ou 18 anos, nosso debate era se o período compreendido entre o fim do feudalismo e o início do surgimento das cidades (burgos), criadas  a partir de acumulação primária dos excedentes comerciais (rotas das especiarias, mercados locais, etc) e das inovações tecnológicas, poderiam ser chamadas de capitalismo mercantil ou pré-capitalismo.

Uma grande asneira, que nos subtraiu a compreensão em perspectiva histórica de um grande flagelo que foi justamente o responsável, isto é, como mola mestra indispensável a acumulação de riquezas para a fase industrial que se seguiria: a escravidão africana.

Como boa parte das escolas de pensamento vinha da Europa, havia uma espécie de consenso-de-negação de que as vantagens competitivas deles na geopolítica do capitalismo de então e até hoje eram resultado da imposição deste suplício africano.

Este assunto jamais foi tratado como devia, dando-nos a entender que o capitalismo era algo que só poder ser considerado como fruto da explosão industrial, que por suas vezes era a consequência de combinação daquilo que Harvey chama de condições essenciais do capitalismo (acho que são sete ou oito, não me lembro), dentre as quais destaco os recursos naturais, inovações tecnológicas, ambiente propício (locus,  já que naquele tempo, mais do que hoje, o que determinava o sucesso ou insucesso de empreitadas era a proximidade com portos e entre centros produtores e mercados, etc).

Bem, creio que ninguém duvida de que qualquer forma de organização social e dos meios de produção não prescinde de gente.

No entanto, essa assertiva não nos garante que será sempre assim.


A despeito da minha ranzinice com este pessoal que advoga a tese do "capitalismo de vigilância ou de plataformas", não deixo de reconhecer que ali há alguma construção teórica a ser aproveitada, embora falte perspectiva histórica ampla e mais conhecimento de Marx, ou de Harvey, ou de outras contribuições preciosas, como a de Kurz (Robert) e sua escola da Crítica do Valor.

Há também os que já enxergam os pressupostos da "escravidão digital", mas que bebem na mesma fonte de erros, ou seja, esquecem de ler o bom e velho Marx, na sofreguidão de herdar seu legado na elaboração teórica desta envergadura.

Como já disse, é uma pretensão válida, que tem se mostrado até aqui inútil.

Vou dar um pulo à frente, e depois volto aonde estamos.

O que estas escolas atuais parecem desconhecer é o componente humano aqui colocado, apesar de dizerem o contrário:

Se na transição feudalismo x capitalismo a força humana de trabalho escrava foi não só fundamental, como imprescindível à acumulação primária, persistindo até bem tarde nas franjas coloniais que ainda sustentavam parte do arranjo capitalista, é novamente agora a força humana escrava que dá sustentação a nova transição, onde a forma anterior de organização do trabalho deixa de ser relevante.

No feudalismo, as formas de assentamento da força laboral obedeciam os critérios rígidos da estrutura hierárquica de classes e nascimento (nobres, Igreja e não nobres), porém que permitiam aos servos uma fixação em seu ambiente (terra), e recebia como resultado parte do produzia, e tais excedentes em algum tempo foram tão significativos a ponto de criarem condições de escambo, que deram origem às cidades, ao dinheiro, sistemas bancários e as bases de lançamentos da aventura colonial.

Claro que esse processo que eu narro aqui não é uma linha reta, mas é fato que se nem todos os servos conseguiram juntar recursos e se tornaram burgueses, não podemos negar que como Marx descreveu, foram as contradições dentro do próprio arranjo feudal que ofereceram as condições de sua superação, sendo que o eixo principal do surgimento de nova etapa que os transportou até o capitalismo era a criação de uma brutal hierarquia entre os povos que se aproveitavam desta transição, e o gigantesco contingente de pessoas incorporadas a este processo como escravos e povos subalternos (colonizados), a quem pouco ou nada dos frutos desta acumulação eram permitidos.

O grande nó agora, é que o capitalismo atingiu um patamar tão alto em sua tarefa de acumulação, que concentra a riqueza nas mãos de um pequeníssimo grupo, distante dos demais por uma abissal desigualdade.

Novamente sua transição busca "novos escravos" para permitir que a mudança de uma Era para outra se dê sem que os ocupantes das camadas inferiores sejam os atores da superação das condições de exploração a que estão submetidos.

E quem são estes novos escravos?

Todos nós.

Explico:

A definição clássica de escravidão não nos servirá aqui, que consiste em termos rasos como a objetificação da mão-de-obra, associada a restrição ambulatória (impossibilidade de ir e vir), e ausência de remuneração constante pelo trabalho  (trabalho concreto), e portanto, impossibilidade de "escolher" para quem vender este ativo (força de trabalho), e enfim, sujeitos de direitos positivados no estamento e capazes de adquirirem bens e serviços produzidos por eles mesmos.

Porém, se sabemos que a "escravidão clássica" antes se dividia por uma escolha geo-étnica (africanos e nativos dos locais colonizados), a "nova escravidão" se define antes por classe social e pela geografia econômica Norte-Sul (por que não dizer, também geopolítica?).

Dentro dos arranjos nacionais e ao redor do mundo, são as classes pobres e assalariadas indispensáveis de antes, pois eram importantes como regulação de preços de estoque do trabalho, como exército de reserva como mão-de-obra, os novos candidatos perfeitos à condição de nova escravidão.

Na medida em que o PIB mundial da produção e desta "troca" capital x trabalho se esgota, onde o estrangulamento da acumulação capitalista via produção aponta dia-a-dia para uma avalanche global de "não-significação" do trabalho e da sua relação com um capital cada vez mais débil, o trabalho "livre e assalariado" caminha para "retornar" à forma de acumulação que prescinde dele nesta nova estrutura de acumulação.

Se na escravidão, a alienação em relação ao produto se dá antes da incorporação como trabalhador, mas garante a ele como "objeto-trabalhador" chances de manter-se vivo pelo interesse do seu dono em garantir o máximo de retorno ao investimento feito para adquirir este "objeto-trabalhador", na nossa atual "escravidão" esta alienação se dá pela total realização da super-expropriação e da redução da capacidade do trabalho em auferir alguma renda para escapar da mera subsistência, sendo que o "dono-patrão" pouco se importa com a tais condições, pois nada investiu, pois a força de trabalho ("objeto-trabalhador) não custou nada.

Nós que contamos mais de 40 anos, por certo nos lembramos que os equipamentos periféricos para os computadores pessoais (chamados de "desktops") apareceram por um preço proibitivo, até serem popularizados e horizontalizados a preços acessíveis.

Junto com esta diminuição de preços experimentamos o aumento brutal dos insumos (os cartuchos de tinta), que hoje custam tão ou mais caros que tais periféricos.

Este padrão se observa em todos os itens atuais, o que me levou a fazer uma brincadeira: vamos ter que penhorar o carro ao posto para comprar a gasolina.

Este chiste é uma representação fiel do nível que chegamos na organização econômica, onde adquirir os bens de consumo, e/ou os bens de capitais nos custará muito menos que os insumos necessários para fazê-los funcionar.

Outro exemplo: eletrodomésticos e o custo da energia, os preços dos tributos dos imóveis e sua manutenção (taxas condominiais) e o baixo custo dos alugueres que os remuneram, o acesso a tecnologia de telefones e o custo da internet para acessar as plataformas ali contidas, e por aí vamos.

Nestes tempos, há uma quase imperceptível alteração nestas esferas econômicas, onde nós somos sugados para nos transformarmos em ativos, quando nossas remunerações cada vez mais escassas nos impedem se exercermos escolhas que nos diferiam da "escravidão clássica" (para quem vender a força de trabalho, ganhar o suficiente para subsistir, escolher onde morar, etc), e que agora, vão nos igualando àquela condição que eufemisticamente chamam de "condição análoga à escravidão".

Junto, e como relação de causa-e-efeito, as formas institucionais de representação política antes aceitas como meios de pacificação de conflitos e de gestão dos  locus capitalistas,  parecem dissolver frente a frenética liquidez do ambiente político e dos chamados padrões e princípios de organização social.

Esta condição, que para nossa visão míope de classe média parece tão longínqua, é a realidade de 2 ou 3 bilhões de pessoas ou mais ao redor do planeta, e que tem com exemplo mais gritante o chamado "sucesso chinês", cantado e decantado em verso e prosa pelos nossos sacerdotes do mercado e da "mídia especializada" como exemplo, ao mesmo tempo que ignoram a contradição implícita com seus alegados discursos de "liberdade individual" e anti-Estado, já que a China é antes de tudo, uma ditadura rígida.

Não é exagero dizer que estes exércitos de autômatos (principalmente no Sudeste Asiático, mas também presentes em SP, o caso do bolivianos e haitianos) estejam em condições iguais ou piores que escravos africanos do Século XV em diante.

Não lhes falta nem a aplicação de castigos físicos, e talvez mais severos diante da antiga visão pragmática dos senhores coloniais de escravos, que mantinham seus melhores escravos em condições mais dignas que estes trabalhadores atuais, como forma de preservação de seu investimento em adquirir os negros.

Hoje, esta imobilização de capital para aquisição de escravos foi abolida, já que os "novos escravos" disputam ferozmente posições para servirem aos "novos senhores", ou seja, os "novos escravos" são bem mais baratos economicamente.

Não é preciso cruzar mares para sequestrá-los, eles vêm de todos os cantos, e se arriscam em barcos pelos mares, ou já estão por perto.

Outra ponta da nova escravização está aqui, neste blog, na sua rede social, nas suas ou nossas plataformas digitais, onde bilhões de pessoas trabalham diariamente para gerar conteúdo que entregam de graça aos donos destes conglomerados de informação, que ainda garimpam e comercializam, como bônus, todos os aspectos sócio-interacionais dos perfis dos seus "escravos digitais", como preferências políticas, de consumo, de costumes, etc.

Exemplo deste novo mundo: corporações jornalísticas, debatendo-se inutilmente contra o monstro digital que as devora, pediram judicialmente indenizações pelo conteúdo produzido por elas, e apropriado gratuitamente pelas plataformas digitais.

Só nós não percebemos ainda do que se trata: quando o serviço é de graça, o produto somos nós, alguém já disse.

Esta é escravidão muito, mas muito mais complexa e intransponível que a "clássica".

Já que ao que tudo indica, ao contrário do processo de escravização colonial (Século XV e XVI em diante), que buscava a acumulação primária, e depois se esgotou pela necessidade de dotar os escravos de capacidade de virarem mercado consumidor, este novo modelo se prepara para eliminar cada vez mais a necessidade de se abastecer na relação gente e produto do trabalho desta gente, já que parece claro que a gente, ou o ser humano é que será seu principal produto.

É a exacerbação de um modelo que restou na época dos escravos coloniais, quando o tráfico de gente, em algumas economias passou a ser mais importante que a própria economia produtiva em si, como em Campos dos Goytacazes e algumas cidades nordestinas, mas que esbarraram nas barreiras ditas reais e físicas, já que em certo tempo interessou aos centros capitalistas a incorporação destes contingentes então escravos ao mercado de seus produtos industriais, ainda que como incidentes periféricos e subalternos.


Hoje, a auto-suficiência dos planos digitais, anexadas às formas de alavancagem financeira, criando uma grande dimensão de serviços e fluxos de informações daí derivados, revela que a objetificação da Humanidade caminha para seu ápice.


Não há nada de moderno no primitivismo que se aproxima.

Não  há nada de avançado na civilização que se anuncia.


 




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