terça-feira, 17 de novembro de 2020

A escolha de Sophia.

Como dissemos ontem, corre o risco da superficialidade apressada qualquer análise mais aprofundada do processo eleitoral ocorrido neste fim de semana último, e que em alguns municípios, como Campos dos Goytacazes, se desdobrará em segundo turno.

Não corremos riscos, portanto, sejamos superficiais.

Seja no feicebuquistão, seja na mídia comercial há narrativas parecidas em curso, que sugerem uma "estranha" sinergia de plataformas que se dizem tão antagônicas, quando a mídia empresarial reivindica a legitimação pelo seu aspecto "mais sério", deixando a histeria feicebuquiana o papel da cacofonia da opinião.

Um olhar mais arguto entenderá que cada vez mais uma se parece com a outra, e vice-versa, e que antes, a mídia empresarial fazia o mesmo papel sujo de assassinato de reputações, extorsões e difusão de boatos com interesses comerciais e políticos, mas não havia ruído porque ela era hegemônica, e a comunicação se dava de forma unilateral.

Não é acidente, mas incidente que os habitantes do feicebuquistão e a mídia tragam no pós eleição uma cantilena parecida.

Ontem não havia um feicebuquiano militante sequer que não tivesse repetido o jargão da "esquerda desunida", para depois emendar ressentimentos, dependendo da legenda que fosse associado (PT ou PSOL, ou outras menos citadas), inferindo que seu partido de preferência fora "traído" pela candidatura própria do outro co-irmão da esquerda.

Teve até reitor de universidade caindo nesta esparrela.

Vamos à vaca fria:

Já dissemos em outros textos, mas é bom repisar, as eleições no mundo capitalista não se destinam a reafirmação de nenhuma forma de democracia, até porque, devemos entender que a possibilidade (democrática) de alternância de poder é nula.

Alternância esta que não deve ser entendida como a mera substituição de governos, mas como a chance de mudar as estruturas de desigualdade que são a essência da acumulação capitalista.

Sendo assim, todas as eleições materializadas em todas as regras das eleições não são o universo da meritocracia política, onde todos concorrem com chances iguais à preferência popular.

Por suas vezes, o eleitorado e suas preferências não ficam em um casulo, ou um recipiente hermeticamente fechado e imune às manipulações e induções patrocinadas pelas máquinas de propaganda, que no caso da Direita funciona diuturnamente, e muito além dos sazonais espaços confinados pelo TSE.

Em resumo, tanto as regras são desiguais, como as formas de convencimento dos eleitores.

Isto tudo porque, sendo o capitalismo um jogo desigual por natureza, e que domina todas as formas de sociabilidade, seu jogo representativo (eleições) não seria diferente.

Este jogo será sempre destinado a dar mais chances aos mais ricos, enquanto os representantes dos interesses dos mais pobres terão sempre seu caminho mais dificultado.

Aqui uma ressalva:

Por favor, não incorramos no pueril erro de confundir a origem do candidato ou a origem do eleitor para conferir legitimidade aos resultados, pois um dos truques mais interessantes do capitalismo e de seus donos é fazer com que os mais pobres imaginem que estarão representados nos interesses dos mais ricos, independentemente de quem sejam os mandatários.

Dito isso, é preciso explicar que a legislação eleitoral atual, modificada há pouco tempo, impediu as coligações nas chapas de vereadores e deputados (as candidaturas chamadas de proporcionais), sob o pretexto de evitar que partidos "de aluguel" servissem de plataforma para que candidatos com poucas chances em partidos grandes fosse eleitos, e mais que houvesse a distorção da eleição de candidatos menos votados, após o cálculo de coeficiente eleitoral e a distribuição deste coeficiente pelas nominatas (as "sobras").

Se o Brasil fosse um país com um sistema eleitoral homogêneo, ou mais próximo disso, dividido em distritos ou regiões eleitorais mais ou menos parecidas, esta reforma faria até algum sentido, e evitaria que eleitores dos mais votados fossem surpreendidos pela eleição de candidatos "nanicos", sem expressão e com pouca representatividade.

Mesmo que abandonemos a ideia central que deveria nortear a chamada Democracia, que é por natureza também o sistema onde as minorias devem se representar, e não um sistema vertical dedicado a concentração de votação e mandatos nos mais votados (sempre!), e passemos a justificar a mudança que impediu a coligação proporcional como uma "melhoria", o fato é que este impedimento é a verdadeira cláusula de barreira desejada pela direita.

Que fique bem claro: 

A Direita não está preocupada com a "qualidade" da representação parlamentar, ou se haverá esta ou aquela sigla de aluguel, já que o fato de não existir pequenos partidos "à venda" não signifiquem que os "negócios" não se deem nas legendas maiores e nas vagas pretendidas.

Só muda (e aumenta) o preço, tornando o sistema cada vez mais impenetrável aos mais pobres, ainda que sejam pobres que concorram pelos partidos da Direita.

O alvo verdadeiro desta mudança foi impedir que os candidatos de esquerda, que historicamente guardam mais afinidade entre si, e tendem sempre a formação de blocos políticos mais homogêneos, pudessem concorrer com chances nas cidades menores pelo interior do país, justamente onde a Direita mantém seu fiel feudo eleitoral e seu capital político inesgotável no controle parlamentar do Congresso Nacional.


Então, quando um reitor de uma universidade como a UENF fica lamentando que o PT não tenha apoiado o PSOL aqui ou acolá, e outros do PT respondam o mesmo, estamos, na verdade, assistindo a reprodução do discurso da Direita na boca de quem diz odiá-la.

Em SP, por exemplo, a candidatura de Jilmar Tatto, uma heresia para a turma pissolista, conferiu ao PT a maior bancada de vereadores, o que permitirá ao Boulos, se eleito, somar com os seus outros tantos eleitos e fazer uma bancada mínima para governar.

Chapas majoritárias no nosso sistema eleitoral são comprovadamente eficazes para "puxar" a nominata proporcional, e raramente um partido de esquerda tem sucesso no parlamento sem um candidato majoritário, e a taxa de sucesso é diretamente proporcional ao sucesso do candidato (a) a prefeito (a).

Então, a única tática eleitoral possível foi lançar candidaturas, mesmo que se saiba que a união em chapas majoritárias pudesse melhorar desempenhos.

Foi uma escolha de Sophia (com no filme estrelado por Kevin Klein e Meryl Streep), sim, mas como no filme não havia outra.

Deste equívoco derivado de desconhecimento total da Lei, e da ingênua crença de que o jogo democrático é justo, e portanto será nossa "culpa" (da esquerda) se tivermos resultados ruins, advém outra baboseira:

- A esquerda é desunida!

Ora, se a profusão de candidatos fosse a causa de insucesso, o que dizer da montanha de candidatos conservadores que nem por isso inviabilizaram a eleição de prefeitos conservadores ou a passagem de ao menos um candidato com este perfil aos segundos turnos?

Exemplos? 

Vários, as capitais de SP, Rio de Janeiro, BH, Campos dos Goytacazes, Florianópolis, Porto Alegre, etc, etc...

Nestas cidades havia várias legendas de direita no pleito.

Ou seja, o que nos torna inviáveis não é a tentativa de mostrar ao eleitor nossas diferenças programáticas ou divergência de interesses que levam a um quadro de duas ou mais candidaturas pela esquerda, mas o simples fato de que O SISTEMA ELEITORAL,  A MÍDIA, O FINANCIAMENTO, enfim, todas as premissas que compõem nosso modelo político são direcionadas a conferir vantagem extra aos conservadores.

Há erros de avaliações, erros táticos e outros tantos estratégicos, mas o fato que a mídia (e parece com a ajuda de certa parcela obtusa da esquerda) mantém escondido é que mesmo com todos estes estratagemas e truques, desde 1982, a representação da esquerda no espectro político nacional sempre cresceu, desde as pequenas cidades rurais, ainda que com um ou dois vereadores, seja nos maiores centros urbanos, e nestes 38 anos, em 14 anos esteve a frente um presidente e uma presidenta identificada com a esquerda.

A esquerda não é desunida, ela é o que pode ser, e mais, ela tem sido o que os conservadores têm ditado.

Portanto, o erro da esquerda não é concorrer em candidaturas separadas (não é só  isso), mas deixar de enxergar os limites da institucionalidade, e da urgência da luta anticapitalista.

É não entender que não se trata de porraloquice irresponsável e niilista, mas tratar de uma agenda anti-estamento que acelere as contradições já postas pelo funcionamento do capitalismo, ao mesmo tempo que recupera o protagonismo dos menos favorecidos (excluídos) como detentores da iniciativa política no pós-capitalismo digital que já bate às portas.


Trago dois textos para ajudar esta leitura, ambos do blog do Nassif, um do Luis Felipe Miguel e outro do Wilson Luiz Müller.

Um analisa a esquerda como todo, e um foca mais no desempenho do PT, mas ambos tratam da legenda como referência, como não poderia deixar de ser.


Enfim, é preciso deixar claro aos ingênuos (e aos cínicos) que a esquerda não existe para "melhorar" o capitalismo ou para lhe dar contornos de "civilidade", apesar do nosso irrefutável comprometimento com causas humanitárias.

O papel da esquerda é acabar com o capitalismo e propor algo melhor que ele em termos de evolução histórica, porque reconhecemos nele todas as causas de todos os males advindos de sua condição genética antecedente: a de ser o sistema que vive e se nutre da desigualdade para acumular e concentrar riqueza, e com ela, o poder de decidir (politicamente) a vida dos excluídos (neste caso, a morte).

A história do Holocausto tem ingredientes semelhantes com os dilemas e trilemas da esquerda mundial e local.

Aos judeus foi dada a chance política de resistir antes de que o Holocausto batesse às portas.

Mas a maioria judia, com influência e condições para liderar a luta, preferiu acreditar que podiam negociar com Hitler, estabelecendo "hierarquias" de sobrevivência a partir da classe social às quais pertenciam, ou imaginavam pertencer no edifício social alemão e europeu.

A escolha de Sophia é sempre um sofisma.




  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quem faz a fama, deita na ca(â)ma(ra)? Um breve momento na Gaiola das Loucas!

  Algo vai muito mal quando juízes e policiais protagonizam política, e pior ainda, quando são políticos que os chamam para tal tarefa... Nã...