quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A Hydra semiótica: saliva, pólvora e a "guerra" entre ciência e política...

 


Desde ontem à noite até hoje pela manhã, quando assisti as versões noturna e matinal dos programas de notícias da Rede Globo, o JN e o RJ 1, respectivamente, fui tomado por um sentimento de completo desalento.

Explico:

Apesar de saber há muito tempo que não se deve esperar nada da empresa do bando Marinho, o fato é que às vezes ficamos paralisados diante da profusão de frentes em que temos que combater.

A mitologia grega é rica em imagens deste desespero humano, diante de sofrimentos e problemas que se realimentam e nos ameaçam.

Temos a figura de Prometeu acorrentado, que tem seu fígado devorado e regenerado todos os dias.

Temos Sísifo, que carrega uma pedra morro acima todos os dias, para vê-la desabar e ter que recomeçar sua sina.

E por fim, temos a Hydra, cuja extinção era uns dos trabalhos de Hércules

A cada golpe do semideus, uma cabeça era decepada, e ao mesmo tempo se regenerava.

É o mito que mais me agrada, porque, ao menos, ele oferece uma saída:

A força de Hércules era inútil, e foi pelo conhecimento que ele descobriu como exterminar o monstro, ou seja, o fogo (simboliza o conhecimento na mitologia grega) era capaz de calcinar o pescoço decapitado, impedindo o surgimento de nova cabeça.

A esquerda brasileira e mundial parecem não enxergar que não adianta decepar as cabeças que simbolizam (representam) a Hydra capitalista, pois elas se regeneram.

É preciso fogo (conhecimento) para dar fim ao bicho.


Ontem à noite o JN dedicou boa parte de seu tempo a expor as bizarrices do presidente, e as respostas e repercussões em todos os níveis de governo, passando pelos "cientistas"  e outras vozes que a empresa de comunicação utiliza para dar alguma legitimidade ao seu discurso.

Não se debate aqui o que disse o presidente, se festejou ou não a morte de alguém como um ponto a favor de suas intenções políticas e disputas com o pretendente ao seu cargo, o governador paulista, que já foi seu aliado.

O que mais me assombra e desanima é a reação proposta (e aceita) por boa parte daqueles que se dizem portadores da luz (fogo) do conhecimento.

A narrativa predominante (inclusive em blogs progressistas, como o Blog do Nassif) é de que há uma guerra entre a política e a ciência.

Santo Zeus, aonde vamos parar?

Nem sei por onde começar, mas vou tentar.


Não há ciência sem que seja movida por interesses políticos e econômicos, geralmente recíprocos,  que resultam em decisões das esferas de poder, por suas vezes, movem as "razões" científicas.

A propagada "guerra" entre ciência e política não é verdadeira, ao menos não como publicaram.

Não existe uma hierarquia em disputa entre a virtude científica, sempre equilibrada e racional, e a barbárie política, sempre egoísta e auto-centrada em mesquinharias.

Tudo isso está misturado, e pasmem, a serviço de interesses que nada têm de "equilibrados" ou "neutros".

Se a ciência fosse "neutra", ou portadora de alguma racionalidade "neutra", e portanto benéfica (enquanto a política é sempre vendida como algo "mal" em si), por que não temos a cura da malária, da Zika, da dengue, ou vacinas para tais doenças?

Ora, porque não há NENHUM INTERESSE ECONÔMICO QUE MOVA A CIÊNCIA a procurar soluções para atender a parte mais pobre do planeta.

Além de serem doenças de "pobres", que não têm recursos para bancar a remuneração dos custos de pesquisa (embutido no preço dos medicamentos ou vacinas), há uma série de decisões econômicas e geopolíticas que determinam que alguns produtos são viáveis, e outros não.

Vou mais além, por que a ciência arranjou a "cura" para a disfunção erétil, enquanto não descobriu a cura do câncer?

Claro que sabemos que são questões bem distintas, mas fica a pergunta:

Quem determina estas categorias de prioridade?

O bem comum?

Nunca, pois são antes decisões de caráter econômico, de avaliação global de retorno e por mais cruel que pareça, de manutenção dos fluxos globais de gastos dos sistemas nacionais de saúde, e dos pacientes, e da capacidade de cada uma destas instâncias em absorver tais custos.


Se a ciência fosse esta coisa virtuosa e asséptica, por que os laboratórios não se uniram em um grande mutirão internacional, compartilhando os avanços de cada grupo de pesquisa pela vacina, acelerando o tempo de desenvolvimento e teste?

Por que tais informações são guardadas com rigor parecido àquele que protege senhas nucleares nas mãos de Trump, Putin, etc?

Quando ouço que a "ciência" é algo que pode estar a salvo das injunções cotidianas e da historicidade, eu confesso: dá vontade de chorar.

Ciência neutra é um tema caro à...à...isso mesmo, ao fascismo, ao nazismo.

Tais modelos que sempre imaginam poder usar a ciência como justificativa para "igualar" em patamares de maior eficiência biológica os seres humanos, em uma espécie de darwinismo-biológico-social, usando a falácia da "neutralidade científica" ou "neutralidade natural" da nossa demanda por eficiência evolutiva.

Sim senhoras e senhores, ciência sem política é ciência sem ética, ou pior, como mostramos acima, com uma ética própria.

Deste modo, por que não permitir a ciência, em nome do "bem" da Humanidade, desenvolver pesquisas genéticas (se já existem) para criar espécimes humanas imunes à doenças, resistente a cansaço, que consumam poucas calorias, etc, etc, tudo dedicado a dotar-nos de maior eficiência produtiva?

O enorme risco de termos pessoas como o Bolsonaro na condução representativa dos interesses do Capital, iludindo-nos de que ele é apenas uma distorção passageira, é quando passarmos ao combate à ele usando a mesma irracionalidade.

Quer dizer, uma irracionalidade ainda pior, porque a irracionalidade autoritária dele é calculada, portanto não é irracionalidade alguma.

Já a nossa é burrice mesmo, já que não sabemos que estamos a replicar o ambiente de ruídos que nos torna surdos às nossas próprias vozes, à nossa racionalidade.

Bolsonaro e Dória são meros garotos de recados das grandes empresas farmacêuticas globais, que já nos depauperam diariamente, seja com a máfia dos antibióticos, seja com a máfia das patentes, com aliciamento de médicos através de esquemas de propagandistas, seja, enfim, pelo sequestro da pesquisa acadêmica (CIENTÍFICA), já que boa parte das mais avançadas universidades do mundo não sobrevivem sem os trilhiardários recursos destas indústrias.

No outro canto, temos as bravatas do presidente, com metáforas diplomáticas sobre diálogo, dissuasão e enfrentamento.

Engraçado que ao falar de saliva e pólvora, o presidente corre o risco de dar a piada de bate-pronto para seus detratores, já que saliva também é metáfora para lubrificante em relações sexuais, ou seja, parece que nosso país exige ser "violado" com algum lubrificante, e não à seco.

Bem, olhando por este prisma, a fala dele faz até algum sentido, e acaba por resumir toda nossa história diplomática, isto é: sempre fomos obedientes ao Tio Sam pela "saliva", ou "no amor" (na linguagem cara aos narcomililcianos).

Nem os presidentes chamados de esquerda escaparam a essa lógica, diga-se.

Na verdade, o que disse o presidente, apesar de tê-lo feito pelos motivos errados, ou seja, defender sua política ambiental devastadora, corresponde à uma demanda nacionalista, que até bem pouco tempo nos foi muito cara, ou deveria ser.

Presidente do EUA não deveria opinar (nem outro de qualquer lugar) sobre como preservamos ou derrubamos nossas florestas.

Principalmente sendo os EUA um exemplo negativo neste sentido.

Para os vira-latas que balançam o rabinho para GI-JOE Biden, é bom lembrar que foi na octaéride obamista que a NSA grampeou Dilma Roussef, e começou sua escalada para destruir Petrobrás e toda a cadeia produtiva do petróleo.

Ao mesmo tempo, Obama atacou nossa indústria de defesa (Odebrecht, em sua ramificação tecnológica-militar), que preparava o modelo de contenção militar do Atlântico Sul com emprego de submarinos com propulsão nuclear, equipamentos imprescindíveis à defesa de petróleo e gás em águas profundas.

O desmonte da EMBRAER, que criou e colocou no mercado o KC-390, substituto do Hércules C 130, da estadunidense Lockheed.


Enfim, todo este quadro e a nossa reação me traz um desânimo profundo, um pessimismo estrutural, que reflete minha descrença na mais remota chance de reação intelectual ao que estamos vivendo.


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