segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A salvação da lavoura dos "meninos de engenho".

 



Talvez seja o fato de eu ter sido criado em uma cidade onde a monocultura sucroalcooleira tenha prevalecido como atividade econômica por séculos que tenha me empurrado para a obra de José Lins do Rêgo.

O autor foi injustamente catalogado como "regionalista", justamente pela sua imensa contribuição para a literatura universal ao descrever com rara precisão o locus deste setor agrário e semi-industrial, no caso dele, no Estado da Paraíba.

Apesar de todas as referências serem regionais, as obras associadas ao "ciclo da cana do açúcar", dentre as quais li Menino de Engenho, Usina e Fogo Morto, junto com outras que tratam de outros temas, como Água Mãe, Pedra Bonita, Eurídice, na obra de "Zé Lins" estão todos os elementos universais humanitários: opressão de classes, crendices, superstições e o poder da Igreja, a subordinação cultural imposta aos mais pobres pelos mais ricos, etc, etc, etc.

Fiz esta introdução para tratar de assunto que parecia de "fogo morto" na região da planície goitacá, mas que recentemente ganhou nova força política e de narrativa, a partir de uma engenhosa (re)construção de mitos e imprecisões.

Falo da atividade monoculturista da cana de açúcar, que de tempos em tempos, após sua conhecida decadência local e regional, insiste em se apresentar como "solução econômica" para substituir a outra dependência atual e também decadente, a da monocultura extrativista dos hidrocarbonetos, que legou à cidade e suas vizinhas um oceano de royalties.

Já mencionamos aqui a primeira armadilha discursiva das elites parasitárias da cidade e da região, que infelizmente é reproduzida e repercutida por alguns acadêmicos e outros analistas bem intencionados, dentre os quais não me excluo, porque já comunguei com esta versão:

A do desperdício, a da "gestão perdulária" dos royalties, ao mesmo tempo que imputa à classe política (exclusivamente) a responsabilidade pelo desvio ou o mau uso destes recursos.

Está aí uma mentira contada um milhão de vezes, que parece ter assumido ares de verdade.

Um exame mais complexo da questão (que nunca foi feito) nos diria que os royalties aplicados nos chamados "elefantes brancos", ou em projetos desnecessários não somariam nem 10% dos valores recebidos pelas cidades.

Sim,  isso é um chute.

Ao mesmo tempo é uma provocação para que se faça este estudo, porque os cientistas e analistas políticos também não detêm número algum que valide mais o chute deles do que o meu, diga-se.

Digamos então, de forma exagerada, que foram 50% dos valores ou seja, 10 bilhões de reais empregados em estádios, centros de convenções, passarelas do samba, e outros "coliseus modernos".

Incluamos aí nestes 50% os projetos de segurança alimentar e renda social chamados pelas elites de "populismo".

Não, não, não...eu tenho certeza que 10 bilhões não foram para estes projetos, nem que eu incluísse nas contas os projetos habitacionais.

Então onde foi parar essa dinheirama?

Uai, no bolso das elites locais e outras de outros lugares que vieram até Campos dos Goytacazes e região para sugarem até a última gota, deixando para trás só o ônus, representados em inchaço das cidades (não é o caso da cidade campista, mas sim de Macaé, Rio das Ostras e Cabo Frio, por exemplo), aumento da demanda por serviços públicos, e uma base de arrecadação reprimida pelos tempos de bonança orçamentária, que justamente beneficiou, outra vez, os mais ricos, que deixaram de pagar impostos como deviam.

Nem vou detalhar muito esta análise, porque estudos também deveriam entender quanto de tributos retornaram da aplicação destas verbas indenizatórias (royalties), o que diminuirá em muito a tese do "desperdício", e/ou comprovará que nossa estrutura tributária protege sempre os mesmo: os mais ricos.

Deixemos isso de lado, por enquanto.

Vamos ao fato de que as elites regionais gritam, agora e novamente, que a saída é nossa vocação agropecuária.

Sei...

Como se esta "vocação" já não nos tivesse deixado um rastro de desigualdade, racismo e violência estrutural fundiária desde o século XVI até o final da década de 90 do século XX, quando as últimas usinas de cana-de-açúcar fecharam as portas.

Dados que não podem ser esquecidos pelos defensores da atividade:

Campos dos Goytacazes foi uma das últimas cidades do Brasil a abolir a escravidão, e considerando que o Brasil foi o último país a fazê-lo, estamos na categoria dos últimos do mundo.

Mesmo assim, já em pleno século XX, a cidade e a região mantiveram a forte "tradição" de escravizar gente, figurando como foco importante desta modalidade de trabalho nos cadastros oficiais dos órgãos repressores.

E por que escravizavam gente entre 1980/2000? Faltou dinheiro?

Não, como região fartamente agraciada com incentivos fiscais dos governos militares (talvez porque ajudaram a queimar em seus fornos os corpos dos militantes de esquerda), recebemos milhões de dólares para dinamizar a produção de etanol para abastecer o programa de energia automotiva chamado de Pró-Álcool.

Bem, se dinheiro nas mãos destes "empresários" trouxesse algum bem à cidade e a região, nós seríamos o paraíso na Terra.

Imaginem o paraíso deixado pelas usinas em 1990 encontrando o paraíso do petróleo das décadas seguintes?

Pelo que sabemos, não foi bem assim.

A vocação maior dos usineiros locais, e dos grandes produtores rurais a eles associados sempre foi a pilhagem, a escravização, tudo com dinheiro público, enquanto se auto-elogiam como vanguarda da inciativa privada.

Querem um exemplo?

Na semana passada, 390 mil litros de etanol foram apreendidos na Baixada Fluminense, embarcados em carretas (caminhões-tanques).

A suspeita?

Uma usina da cidade de Campos dos Goytacazes emitia notas fraudadas para permitir a outros empresários usufruírem da redução de impostos, concedida àquela unidade industrial campista como subsídio à produção e geração de empregos!

Ah! Isso é só uma exceção, dirão os defensores do coronelato.

É, talvez.

A julgar pela história de escravagismo e violência do setor, pode ser que crimes fiscais até sejam uma sofisticação excepcional.

Tudo, afinal, é uma questão de ponto de vista.





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