quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O Feitiço de Áquila

 



Quem tem mais de 40 ou 45 anos se lembra deste filme "sessão-da-tarde", com Rutger Hauer (o eterno replicante de Blade Runner), Michele Pffeifer, e o então garoto Matthew Broderick.

A trama é simplória, mas não menos criativa: Trata de amores impossíveis, reificado na maldição sofrida pelo casal (Rutger e Pfeiffer), condenados a nunca se encontrarem como humanos, ele transformava-se em lobo, todas as noites, e ela vivia como um falcão durante os dias.

Claro que o filme lida com sensações fáceis, mas podemos retirar dali outros sentidos de incomunicabilidades, principalmente neste tempos difíceis de hoje, quando cada relação humana parece condenada a esta mesma incompatibilidade.

Em sentido lato, todos os agrupamentos humanos buscam na normatividade (Direito) a forma mais próxima do ideal para diminuir a tensão e os conflitos da sociabilidade, e caso isso não seja possível, que haja então um sistema de reparação e/ou punição a quem tenha cometido alguma infração às normas impostas a todos, e tais sistemas se dividem, via de regra, em dois grandes ramos: público e privado.

É uma explicação rasa dos sistemas constitucionais, eu sei, mas nem o espaço, e nem o pouco conhecimento deste escriba permitem maiores teorizações.

Com o tempo, diante das mudanças ocorridas nas formas de sociabilidade, alteradas principalmente pela ruptura e surgimento (transição) de modelos econômicos, estas formas originárias (pública e privada) foram se ramificando em subdivisões, mas que guardam na essência as suas naturezas.

É o caso da Justiça Eleitoral no Brasil, um ramo tão híbrido quanto inadequado, que mereceu por isso a alcunha de justiça especial.

Sim, é caso especialíssimo, pois raros os países ocidentais tratam os conflitos eleitorais em um ramo específico da Justiça, dotada de força legislativa (normativa) em seus atos, e que tutela não o conflito, mas a própria noção de organização de partidos e enfim, do próprio exercício dos direitos políticos, mola mestra da cidadania.

Deixemos esta discussão para outra ocasião, porque ela também requer bastante espaço (e conhecimento), matérias raras aqui, como já dissemos.

Hoje a situação como está posta, e que tem em Campos dos Goytacazes (mais uma vez, e como quase sempre) um "espelho do Brasil" (como disse algum presidente, uns dizem Vargas, mas não sei ao certo) nos sugere que a noção basilar dos sistemas normativos (Estados de Direito) não consegue mais conviver (ou se encontrar) com seu objeto pretendido, a Justiça.

Qualquer rábula, ou qualquer calouro das faculdades de direito sabem dizer, mesmo que não compreendam bem o que dizem, que Justiça é conceito mais amplo que as estruturas positivas de Direito (leis e/ou sua aplicação pelo Judiciário).

De verdade, a aplicação das leis pelos tribunais e juízes parece confirmar essa desconfiança de que embora tenham decorado a frase acima, poucos entendem seu significado.

Uma maldição digna de receber o nome de Feitiço de Áquila.

Explico:

A grande trapalhada proporcionada pelo candidato a vice na chapa do herdeiro da Lapa, quando deixou de observar o prazo limite para se afastar de entidades as quais dirigia, para então se habilitar ao posto de candidato, nos revela como Justiça e Judiciário são nos dias atuais, água e óleo ou, falcão e lobo.

Primeiro é bom que eu resuma antes minha opinião sobre o tema, que também escrevi nestes dois textos: A teoria do executivo unitário e Presente de Grego.

Sim, o atrapalhado candidato (que se acha o suprassumo da gestão empresarial) poderia ter se prevenido e saído dos cargos um mês antes, que fosse.

Agora, de fato, sua candidatura reúne as condições de ser impugnada e se assim for, cai junto o candidato a prefeito.

Porém não é sobre este fato que eu chamo a atenção dos senhores e das senhoras.

É sobre o absurdo hermenêutico que se tornou a aplicação das normas neste país que falaremos aqui.

Temos um judiciário contaminado pelos interesses partidários (e outros que não ouso comentar), que se tornou uma ferramenta de espancamento do sentido das leis até que elas confessem a adesão às interpretações jurídicas múltiplas, e na maioria das vezes as decisões  judiciais daí derivadas apontam em sentido contrário, subtraindo qualquer chance de estabilidade normativa ao Judiciário, justamente a "qualidade " que se busca quando a ele nos submetemos.

É o caso do processo de impugnação da chapa 55.

O registro dos candidatos obteve no Juízo de piso (1 ª instância) o "ok", desconsiderando as questões formais de afastamento, ou entendendo que a entidade a qual o candidato à vice esteve vinculado não estava no rol proibitivo.

Esta decisão é grave, não por discordarmos dela, mas porque ela deu contorno de legitimidade a um ato (o registro), cuja manutenção ou cassação tem repercussão não só no direito subjetivo dos candidatos, mas de todos os demais que decidirem votar neles.

Assim, é preciso dar o tamanho exato que as coisas têm.

Há um paradoxo estranho na Justiça Eleitoral, que trata a si mesma como a quintessência do jogo democrático, como guardiã dos processos eleitorais e da vontade popular, enquanto ao mesmo tempo trata os direitos políticos e da cidadania pela ótica da formalidade estrita, e quando na presença de conflitos de natureza formal ("burocráticas") ou políticos (direito de votar e ser votado), pende autoritariamente para consagrar a Norma em detrimento do Direito.

No caso em tela este paradoxo é evidente, e pior, a ação da Justiça é que deu causa a uma situação insanável, contrariando a essência processual, que é sanar problemas apresentados, ainda que pendendo para este ou para aquele lado processual.

Explico:

Quando o Juiz de 1 º piso decidiu, a sua decisão foi reformada por um órgão superior.

Ok, pensa você, leitor ou leitora, assim são os processos.

O problema é que a decisão que reformou o entendimento do juiz primeiro aconteceu quando o prazo para substituir o candidato à vice já estava prescrito, ou seja, sem a decretação de um novo prazo para tal troca, a decisão que deveria buscar sanear o processo eleitoral através da substituição daquele que não reunia as condições para ser candidato, acabou por atingir o direito do candidato a prefeito, seu partido e seus eleitores, gerando um desequilíbrio político indesejável e pior, inaceitável.

As formalidades eleitorais não devem ceifar partidos e movimentos políticos de concorrerem e apresentarem suas propostas, ainda que seus indivíduos sejam considerados inaptos por tais atos formais, simplesmente porque sistemas políticos privilegiam a noção coletiva (partidos), e não pessoas.

A busca, com raras exceções, é sempre possibilitar que estes movimentos coletivos sejam submetidos aos escrutínios populares.

Eu me refiro aqui, notem bem, não a formalidade da inaptidão pessoal do candidato à vice, cuja impugnação eu concordo.

Mas sim a extemporânea (fora do tempo) decisão judicial que foi proferida, em grau de recurso, quando não era mais possível à chapa 55 colocar outro em seu lugar.

Em resumo, o processo e seu curso atingiram um direito fundamental, que é o de votar e ser votado, quando o efeito direto desta decisão é a impugnação da chapa toda, ou em outras palavras, a decisão "atrasada" do TRE antecipou em si os resultado da sentença final que só deve ser conhecida pelo TSE, retirando por ato intermediário (de 2ª instância) o objeto da lide (a candidatura a vice e a do prefeito) do alcance da última etapa jurisdicional.

É caso raro, raríssimo, onde o acessório (candidato à vice) irá macular o principal (candidato à prefeito), tamanha a desproporção do ato judicial reformador.

Perguntamos: 

E se o TSE, um ano, ou dois anos depois, entender que assistia razão à chapa 55?

Como rodar a roda da História ao contrário, e reconstituir os direitos dos eleitores e dos cassados?

Por isso o Vice-Procurador do TSE, em seu parecer na ação que chegou ao topo da cadeia judicial eleitoral, lavou as mãos em seu parecer, como bem notou o arguto Marcos Pedlowski, aqui 

Este "filme" eu posso antecipar o final: A Justiça e o Judiciário nunca se livrarão do Feitiço de Áquila.














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